Havia um corredor. Criada numa casa enorme e com um quintal maior ainda, reuniões budistas eram feitas rigorosamente todos os domingos, mediadas pela própria avó. Mas havia um corredor e nele uma réplica que se confundia com a original. Monalisa imperava naquela parede imensa branca. Encostada na parede do corredor, ouvia atenta, com um certo medo e fascínio, as preces ditas em palavras indecifráveis. Observando todo aquele clima seriíssimo, queria muito entender. Por muitas vezes, seu olhar devia se equiparar com o de Monalisa. Curiosa, aos dez anos de idade não tinha altura nem intelecto para analisar toda aquela perspectiva inovadora do pintor italiano, mas recostava sobre a parede da frente e escorregava, até sentar no chão, enquanto ao fundo, ouvia mantras tibetanos. Ali, sonhava. Sabia, no entanto, que para chegar à sala de reuniões, o corredor fazia parte do caminho e daí sempre, absolutamente sempre, todos que passavam pelo quadro olhavam pra ele. Pediu gentilmente à avó uma parede emprestada para, infantilmente pintá-la. Budista, vó e com 10 netas mulheres permitiu, sem nem se preocupar com o que seria rabiscado nem com a cor. Mas além de tudo, esperta pois, a avó escolheu a parede mais recolhida, bem nos fundos do casarão, sem passagem nem corredor. Bastante distante da Monalisa e dos convidados. Mas ainda assim, era uma parede. A menina pintou os quatro cantos dela, e atraiu olhares - obviamente por motivos absolutamente opostos de Da Vinci, mas conseguiu o que queria e simplesmente adorou.
A avó não existe mais, consequentemente as reuniões também não, mas a casa sim. Essa, parece ter diminuído - ainda enorme, mas não faz mais tanto sentido. Aos 10 anos, para atravessar aquele corredor mágico com seus pés miúdos, deveria dar exatamente 50 passos. Hoje, a metade deles.
O quadro está intacto e, encara de frente aqueles olhos que sempre a acompanhavam. Afinal, Monalisa era a grande vigia do corredor. Percebeu que aquelas tardes foram uma espécie de berço para preencher cada lacuna que tinha dentro daquele peito e, expandir tantas outras.
Aos 11 anos, percebeu que quando pintava as capas das pastas de prova no colégio, as professoras não davam a devida atenção aquilo - o contrário dos praticantes de budismo na casa de sua avó. Ela queria ver devoção em suas funções. Se irritou com aquilo e um dia resolveu pintar uma capa toda de preto. Os sapos já impressos sumiram, o céu não estava padronizadamente azul nem as plantas coloridas. Aquilo sim chamou atenção e sua mãe foi rapidamente avisada. Em casa, perguntada sobre aquilo, riu, e disse que não era nada. Pelo contrário, era piada.
Aos 12, recortava dos jornais fotos impactantes e crônicas do Segundo Caderno - estava convicta de que iria ler aquilo algum dia. Encheu 3 gavetas do seu quarto.
Aos 13, era apaixonada por Cazuza e ouvindo suas músicas, acendia velas e tentava atrair alguma presença espiritual. Lendo e entendendo as intrínsecas linhas das músicas, numa chuva de códigos, notou que o cantor gostaria de ser - ou imaginava que já tinha sido, um índio. Certo dia chegou a passar colorau nas bochechas, em nome ao ritual.
Aos 14, gostava tanto da Alice do País das Maravilhas que pintou seus cabelos daquele branco platinado, e usava dois relógios em cada pulso.
Aos 15, com os cabelos já castanhos, percebeu que as meninas da sua idade os mantinham enormes, como uma espécie de cortina que lhe cobria os ombros e os sentimentos. O que antes lhe roçavam os rins, decidiu que seu pescoço deveria ficar à mostra.
Aos 16, quis virar poliglota e foi direto para a 2a língua mais difícil do mundo, aprendendo um alfabeto diferente.
Aos 17, foi em busca da consciência do corpo, e se matriculou em aulas de expressão corporal. Ficava 20 minutos, de frente pra o espelho e de quatro, com mais 5 alunos, tentando controlar uma bolinha de tênis com a coluna vertebral. Dançava livremente, mas já não o fazia mais com os braços pro alto, como uma maluca. Se machucava muito por isso, o que lhe rendia diversos roxos espalhados pelo corpo.
Mas as pessoas são muito cruéis e ninguém sabia o que acontecia de verdade. Julgavam-na da pior maneira possível, de uma forma que lhes rendesse assunto até o final do dia:
Aos 11, foi avaliada como depressiva precocemente. A partir de avaliações psicológicas do desenho, decidiram que havia algo de errado com aquela garota obcecada pela obscuridade.
Aos 12, era considerada Transtornada Obsessiva, fascinada por guardar coisas inúteis.
Aos 13, a chamavam de macumbeira.
Aos 14, tinham certeza que usava drogas e, estava perdida na viagem de Carrol, provavelmente sem volta.
Aos 15, diziam que estava virando homem.
Aos 16, era tão anti-social que, não suficiente inutilizar sua língua materna, se isolava mais ainda com a desculpa de não ter com quem conversar em outro dialeto.
Aos 17, era presenteada com marcas pelos corpo depois de cair bêbada, louca de tanta cerveja.
Se essa menina existe mesmo, aos 18 anos é apaixonada por todas as cores e não cores; finalmente leu todas as crônicas guardadas e aprendeu com os grandes que existem outros mil; foi além do Cazuza e agora o blues, o jazz e a clássica também a colocam em transe; está deixando seus cabelos crescerem pois ama tanto a mudança que agora está experimentando uma nunca sentida antes: a lenta; possui algumas características masculinas sim, e dentre elas, desprezo pela inveja explícita feminina, e um par de sapatos Gucci; está ganhando seu acordo consigo mesma, pegando o diploma de mais um idioma - o que lhe aumenta a possibilidade da comunicação; e nunca suportou cerveja. Se mudou, de casa e de pele - o faz constantemente. Assustando os mais próximos, cria personagens até hoje. Para ela, é um alívio. Sempre rumo à lucidez, confirmou com experiências próprias que o inferno são mesmo os outros, e que, se os lobos correm dentro do seu peito e o trem descarrilhado está desgovernado em suas veias, que os deixe. Você é o único que poderá se machucar de fato com o perigo e com a paixão. O que dá no mesmo.
O importante é fazer vida em qualquer canto, até no que parece ser apenas um corredor.