Algo de estranho permeia o meu peito quando vejo algum objeto igual ao meu em mãos desconhecidas, capas de livros absolutamente íntimos em estantes alheias, perfumes que remetem a singulares situações fora de contexto, em outros corpos ou outros campos.
.
.
.
Parece que o outro passou por algum corredor estreito ao meu lado, inspirando o mesmo oxigênio que eu e não percebi. Daí a sensação estranha de compartilhar um gosto e um pensamento similar, se não o mesmo. A estranheza sacode meus ombros e grita nos meus ouvidos que nós não estamos sozinhos.
.
.
.
Ontem fui na casa da vizinha de cima, uma francesa que mora no Brasil há décadas. Ela mora no apartamento há pelo menos o dobro da minha idade. O dela, com centenas de metros quadrados, mais parece um deserto para uma só pessoa. Num vazio incômodo, o cheiro fortíssimo de caffe ocupa todo o espaço que lhe é possível. O meu, exatamente com o mesmo planejamento arquitetônico e de mesma simetria e disposições, é habitado por 3 pessoas, mas fazemos tanto barulho que alguns perguntam porque as minhas outras irmãs não saem de casa. "Não existem outras, somos só nós", respondo. Descendentes de italianos são assim. A consequência disso é o encurtamento de espaço. O ambiente é caótico. Nas festas de família, frequentemente os vizinhos convidam policiais para baterem as nossas portas - moradores de Copacabana são assim. Parece briga, mas a porta é aberta e, estamos nos abraçando.
Avec le temps...avec le temps va, tout s'en va... escuto aqui em baixo, a música que sai lá de cima.
Sometimes I hang my head, in shame. When people see me, they scandalize my name. I'm going down... ela escuta lá em cima, a música que ecoa aqui de baixo.
Nos últimos anos não esqueci da Marion, mas o (na verdade, a falta de) tempo tem me impedido de reviver aquelas tardes imensas. Não só o tempo, mas a altura - que me impede de brincar de baixo da sua mesa da sala, as barbies esquecidas e o bom senso. Talvez a vergonha também. Como será a visão de lá de baixo, agora, com esses olhos maiores ainda?
Ontem fui visitá-la depois de alguns anos, com quebras de regime em encontros no elevador, no hall, e em todos os outros lugares que sempre se resumirão a tímidos tudo bens, seguidos de interrogações sem a certeza da resposta.
Quando fui ver Marion as paredes continuavam amareladamente iguais. Até hoje não sei se é esse mesmo o tom da cor, ou se o cheiro do caffe se materializa e faz dar a impressão de o branco ser encardido. Talvez o sofá fosse outro, já não lembro. Percebo a televisão ocupar o lugar de um quadro. Talvez Marion tenha dado prioridade ao barulho mudo da televisão, ao silêncio ensurdecedor de Renoir. Não sei se é a velhice. Talvez sim. Mas isso não importa. Marion ainda carrega o sotaque rasgado do francês, deve estar alguns centímetros mais baixa, com o mesmo sorriso de canto de boca, escondendo uma certa rigidez que não tem nada de carranca.
O caffe já começa a ser feito. Ali é lei. Lá em baixo, não temos televisão, e o café só é feito dia de semana, para manter a cafeína ativando o cérebro.
Aqui em cima, as fotografias fazem a presença de suas filhas que moram a milhas, enquanto lá em baixo temos o péssimo hábito de não revelá-las. Álbuns de fotografias só são feitos em datas comemorativas.
Encontro uma minha perdida, naquelas caixas com um cheiro que só o tempo pode dar, com as feições ingênuas que ele também há de tomar, recém chegada da praia, com a pele de uma cor que apenas o luxo de largar tudo agora poderia me dar, chupando a ponta do cabelo, com gosto de sal do mar.
Marion volta da cozinha, perguntando, alegre, a caffe? oui, oui?
Desconfio dos resquícios de francês em sua língua ser pura vaidade. Mas não é ruim, não tê-lo a descaracterizaria. Rio e respondo, si vous plâit madame, trés fort, tentando resgatar algumas frases que me ensinou, por demais esquecidas. Em meio as brincadeiras e as conversas, lembrei que quando pequena eu passeava pelos cômodos tateando as paredes, de olhos vendados, tentando descobrir o que estava em cada pedacinho da minha casa, no andar de baixo. Já sabia o percurso a ser seguido. Desviava do que era necessário, ia mais rápido em algumas partes, sempre tentando achar alguma semelhança em um espaço também vazio, ou mobiliado. O dela, no entanto, era sombriamente vazio, o meu, aconchegantemente cheio. Então, eu fazia livremente o contorno de todos os móveis da minha casa sem que estivessem ali, mas como se desenhados no chão. Não havia a possibilidade da colisão. Nossa maior diferença, de mesma metragem, separada por um teto.
Hoje percebi que ainda se mobiliassem exatamente do mesmo jeito, ainda faltaria algo e, nem mesmo se erguessem dezenas de paredes naquela casa, preencheria o vazio. Nada teria a ver com festas, televisões ligadas ou Ferré sussurrando no último volume. Faltava um tipo de presença ali.
Dessa vez não pude realizar minha função, exercida praticamente todos os dias, durante anos da minha infância com primos, amiguinhas e francesinhos malditos, les petit-enfants, o maravilhamento da identificação.
Não escuto mais Ferré nem Piath berrando lindamente pelas janelas de cima, e faz falta. Falta que me iguala a Marion. Tout s'énvanouit...
.
.
.
Aqui, no andar de baixo, meu suspiro enche meus pulmões, sempre parecendo não darem conta.
Lá, no andar cima, Marion expele um certo vazio pela boca.
Aqui, o café passou a ser necessário pela função.
Lá, aprecia seu caffe, sentada em seu sofá, quiçá novo, observando as cenas passarem diante de seus olhos.
Lá, na sua espera, tem pressa.
No seu Atacama particular, tenta manter seu coração molhado pois, seus olhos permanecem ressequidos.
Aqui na minha pressa, somente espero.
No meu Oceano Atlântico tempestivo faço ventanias catastróficas, renasço em outras praias. Deliro a qualquer hora, deságuo por todos os cantos.
Na minha inundação particular, viro divisor de águas.