27/09/2010

Havia um corredor. Criada numa casa enorme e com um quintal maior ainda, reuniões budistas eram feitas rigorosamente todos os domingos, mediadas pela própria avó. Mas havia um corredor e nele uma réplica que se confundia com a original. Monalisa imperava naquela parede imensa branca. Encostada na parede do corredor, ouvia atenta, com um certo medo e fascínio, as preces ditas em palavras indecifráveis. Observando todo aquele clima seriíssimo, queria muito entender. Por muitas vezes, seu olhar devia se equiparar com o de Monalisa. Curiosa, aos dez anos de idade não tinha altura nem intelecto para analisar toda aquela perspectiva inovadora do pintor italiano, mas recostava sobre a parede da frente e escorregava, até sentar no chão, enquanto ao fundo, ouvia mantras tibetanos. Ali, sonhava. Sabia, no entanto, que para chegar à sala de reuniões, o corredor fazia parte do caminho e daí sempre, absolutamente sempre, todos que passavam pelo quadro olhavam pra ele. Pediu gentilmente à avó uma parede emprestada para, infantilmente pintá-la. Budista, vó e com 10 netas mulheres permitiu, sem nem se preocupar com o que seria rabiscado nem com a cor. Mas além de tudo, esperta pois, a avó escolheu a parede mais recolhida, bem nos fundos do casarão, sem passagem nem corredor. Bastante distante da Monalisa e dos convidados. Mas ainda assim, era uma parede. A menina pintou os quatro cantos dela, e atraiu olhares - obviamente por motivos absolutamente opostos de Da Vinci, mas conseguiu o que queria e simplesmente adorou.

A avó não existe mais, consequentemente as reuniões também não, mas a casa sim. Essa, parece ter diminuído - ainda enorme, mas não faz mais tanto sentido. Aos 10 anos, para atravessar aquele corredor mágico com seus pés miúdos, deveria dar exatamente 50 passos. Hoje, a metade deles.
O quadro está intacto e, encara de frente aqueles olhos que sempre a acompanhavam. Afinal, Monalisa era a grande vigia do corredor. Percebeu que aquelas tardes foram uma espécie de berço para preencher cada lacuna que tinha dentro daquele peito e, expandir tantas outras.

Aos 11 anos, percebeu que quando pintava as capas das pastas de prova no colégio, as professoras não davam a devida atenção aquilo - o contrário dos praticantes de budismo na casa de sua avó. Ela queria ver devoção em suas funções. Se irritou com aquilo e um dia resolveu pintar uma capa toda de preto. Os sapos já impressos sumiram, o céu não estava padronizadamente azul nem as plantas coloridas. Aquilo sim chamou atenção e sua mãe foi rapidamente avisada. Em casa, perguntada sobre aquilo, riu, e disse que não era nada. Pelo contrário, era piada.
Aos 12, recortava dos jornais fotos impactantes e crônicas do Segundo Caderno - estava convicta de que iria ler aquilo algum dia. Encheu 3 gavetas do seu quarto.
Aos 13, era apaixonada por Cazuza e ouvindo suas músicas, acendia velas e tentava atrair alguma presença espiritual. Lendo e entendendo as intrínsecas linhas das músicas, numa chuva de códigos, notou que o cantor gostaria de ser - ou imaginava que já tinha sido, um índio. Certo dia chegou a passar colorau nas bochechas, em nome ao ritual.
Aos 14, gostava tanto da Alice do País das Maravilhas que pintou seus cabelos daquele branco platinado, e usava dois relógios em cada pulso.
Aos 15, com os cabelos já castanhos, percebeu que as meninas da sua idade os mantinham enormes, como uma espécie de cortina que lhe cobria os ombros e os sentimentos. O que antes lhe roçavam os rins, decidiu que seu pescoço deveria ficar à mostra.
Aos 16, quis virar poliglota e foi direto para a 2a língua mais difícil do mundo, aprendendo um alfabeto diferente.
Aos 17, foi em busca da consciência do corpo, e se matriculou em aulas de expressão corporal. Ficava 20 minutos, de frente pra o espelho e de quatro, com mais 5 alunos, tentando controlar uma bolinha de tênis com a coluna vertebral. Dançava livremente, mas já não o fazia mais com os braços pro alto, como uma maluca. Se machucava muito por isso, o que lhe rendia diversos roxos espalhados pelo corpo.

Mas as pessoas são muito cruéis e ninguém sabia o que acontecia de verdade. Julgavam-na da pior maneira possível, de uma forma que lhes rendesse assunto até o final do dia:
Aos 11, foi avaliada como depressiva precocemente. A partir de avaliações psicológicas do desenho, decidiram que havia algo de errado com aquela garota obcecada pela obscuridade.
Aos 12, era considerada Transtornada Obsessiva, fascinada por guardar coisas inúteis.
Aos 13, a chamavam de macumbeira.
Aos 14, tinham certeza que usava drogas e, estava perdida na viagem de Carrol, provavelmente sem volta.
Aos 15, diziam que estava virando homem.
Aos 16, era tão anti-social que, não suficiente inutilizar sua língua materna, se isolava mais ainda com a desculpa de não ter com quem conversar em outro dialeto.
Aos 17, era presenteada com marcas pelos corpo depois de cair bêbada, louca de tanta cerveja.

Se essa menina existe mesmo, aos 18 anos é apaixonada por todas as cores e não cores; finalmente leu todas as crônicas guardadas e aprendeu com os grandes que existem outros mil; foi além do Cazuza e agora o blues, o jazz e a clássica também a colocam em transe; está deixando seus cabelos crescerem pois ama tanto a mudança que agora está experimentando uma nunca sentida antes: a lenta; possui algumas características masculinas sim, e dentre elas, desprezo pela inveja explícita feminina, e um par de sapatos Gucci; está ganhando seu acordo consigo mesma, pegando o diploma de mais um idioma - o que lhe aumenta a possibilidade da comunicação; e nunca suportou cerveja. Se mudou, de casa e de pele - o faz constantemente. Assustando os mais próximos, cria personagens até hoje. Para ela, é um alívio. Sempre rumo à lucidez, confirmou com experiências próprias que o inferno são mesmo os outros, e que, se os lobos correm dentro do seu peito e o trem descarrilhado está desgovernado em suas veias, que os deixe. Você é o único que poderá se machucar de fato com o perigo e com a paixão. O que dá no mesmo.
O importante é fazer vida em qualquer canto, até no que parece ser apenas um corredor.

16/09/2010

A dor física é a mais solitária de todas.
Há um relato de um amigo, que certa vez, a dor das pedras nos seus rins estava tomando uma proporção tão insuportável que, ao avistar uma piscina, pulou de roupa e tudo e, bebeu água até começar a vomitar. Num ataque súbito de loucura, não haveria desabafo, choro ou relato que transpusesse aos conhecidos o que se passava ali, dentro dele. Até enlouquecer. Seu ato transferiu perfeitamente o que ele sentia.
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A dor se torna mais ferina ainda quando você vai ao encontro dela. A dor consentida queima arde borbulha e parece rasgar ainda mais quando você permite o sofrimento.
Eu queria ser mais amena. Eu queria ser mais amena para não assolar meus pés com tanto amor e com tanta frequencia, com hora e lugar marcado.
Eu queria ser menos severa. Menos severa porque eu sei que o molde é necessário e, um fio de cabelo fora do lugar pode comprometer todo o treinamento, o trabalho, a espera, o espetáculo, a realização.
Eu queria ser menos exigente com a forma, porque, estou completamente fora dela e regredir enquanto só se avançava é demais pra mim. Eu preciso da forma. Nada tem a ver com fôrma ou formato. Essa forma pode ser igualada à força. Física.
Eu queria ser menos síncopes. Tencionar menos quando meus ouvidos se permeiam de absurdos.
Eu queria ser menos esquecida, e que a minha frequência alfa se sobressaísse menos sobre a minha beta.
Eu queria conseguir colocar menos açúcar no suco.
Mas eu queria ser mais também. Um paradoxo:
eu queria ser mais doce, pra não ser tão intoxicante com tanta facilidade.
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Ainda assim, tudo isso perde proporção perto do que me aterroriza.
Não sei se estou sofrendo um aborto ou se estou na fase de nidação, fase em que o óvulo se prende na parede do ovário.
Não sei se estou perdendo uma parte de mim ou se brevemente vou ter de lidar com a responsabilidade que é a cria.
Mas ideias não se abortam, apenas são deixadas pra trás, as vezes desmaiadas mas nunca mortas, sacrificadas por medo. Gerar é a premissa e colocar no mundo é o resultado de uma solução. Deixar a criança grudada na barra da saia é desonrá-la.
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Hoje vi uma borboleta saindo do casulo, mas ela saiu meio desfalecida porque parecia que uma parte dela tinha ficado lá. Lá dentro, grudada na casca. Até agora não sei o que exigiria uma força maior: sair de lá, ou desprender aquele seu pedacinho do casulo. Ainda assim, seria incálculável.
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Eu tenho Hálux Valgo, um osso proeminente que fica na parte interna do pé, bem próximo do dedão. Dentro dele há um líquido. Acontece que o meu pé ta todo zoado, meu líquido inflamado e bem vermelho e inchado. Não tenho tido bolhas nem calos nem rasgos e isso poderia ser um sonho, mas a minha prece ontem parece que não foi ouvida. "No pain no gain", mil vezes martelando na minha cabeça mas não deu. Pedi arregoperdão, e tirei as sapatilhas no meio da coreografia. Que Mozart me perdoe, mas não deu. Antes tivesse sangrado...com a poça nos pés já estou acostumada. Mas a dor era dentro. Solitária demais, forte demais. Impossível fazer entender. Antes que eu enlouquecesse como o amigo e atirasse aquele gesso camuflado de rosa no espelho, pedi licença e me retirei.
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A única coisa que sei é que a dor mais atroz é a de dentro.
Quantos passarão e passam ao meu lado, todos os dias, cheios de hemorragias internas e eu não sei?
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um pouco da dedicação bruta, mas que acima de tudo, love is the only reason:


09/09/2010

Troquei os olhos pelas mãos, o coração por algum sentido.
Troquei o hedonismo grotesco pela pulsatilla, reservado pros que choram junto com a música. Troquei as euforias libertinas pela minha sanidade quentinha. Troquei o suplício azucrinante pela indiferença dos quais fingem felicidade, cheios de falsos sorrisos. Troquei a minha furia por cinco pontes de sanfena, os meus medos por 3 cartelas de ranitidina por mês. Troquei minhas quedas nas notas do colégio por alguns parafusos no joelho. Troquei a literatura cáustica do Bukowski pela agonia da Clarice. Troquei a endorfina pela adrenalina. As taças espumantes revezo com chás fumegantes. Troquei todas as minhas descendências, orientais e europeias por partes deus-sabe-o-quê. Troquei minhas asas por uma janela enorme.
A fruta mordida pela fruta inteira.
Hoje, o âmago que apresento é liso, mas não troco o ar beato sem flores que carrego..Mas às vezes o ego grita e eu não resisto. E as velhas pérolas que abraçam meu pescoço, não me deixam escapar os enfermos fios de dúvida que pairam sobre a minha cabeça. Talvez sejam dos infernos mesmo.
Excelente.
A minha pele continua confortável, mas as pessoas continuam olhando.