30/11/2010

Eu amo perfumes. Principalmente aquele que não tem fórmula, onde cada um tem o seu, bem naquela parte entre a orelha e o pescoço. Perfume de cada parte do corpo, do dorso, da lateral do nariz, entre os dedos. Cheiro de manhã recém nascida, de dia ruim, de ir embora, de chuva que ta vindo. Perfume de pé de bebê, de massinha, de papel quente recém impresso. Eau de Toilette, almíscar, amadeirado. Cheiro de manjericão, de almoço sendo feito, de arroz queimado. Perfume de corpo que trabalhou o dia inteiro, de lençóis que precisam ser trocados. Cada cheiro tem a sua personalidade e o seu tom. E então dá pra imaginar um tipo de perfume para cada um, só de encarar as faces. Ou os pensamentos. Ou as escritas. Ou o imaginário.
Baudelaire rodeado por flores. Floral da cabeça aos pés. Mr. Catra exala vigor. Bukowski mergulhado em álcool. Chanel, Moss e Lispector, musas transpirantes de cigarro. Marilyn e o seu número 5. Napoleão lançando vitória por todos os poros. Amy Winehouse cheira a inflamação, edema e pus. Copacabana virou mictório. Mario Bros não toma banho. Fante vivia empoeirado, fazendo qualquer um que se aproximasse espirrar. Van Gogh teve várias fases. Luciana Gimenez borrifa gotinhas de vácuo pelo corpo. Alexandre Pires é chocolate ao leite. Henrique VIII e sua atmosfera fétida. Gisele tem o cheiro que ela quiser. Federação é derivação de feder? Ultimamente tem cheirado à merda. Não há perfume sintético que sobrepunha o fedor. Manson obscurece qualquer fantasia, o cheiro assusta. Benício del Toro eu gostaria de descobrir pessoalmente. Carla Bruni com certeza usa alguma substância florestal. Edward Scissorhands ainda que impregnado de ferro e couro, cheira à doçura. Audrey Hepburn é inclassificável. Perfume nunca sentido antes. Barbarella guarda a galáxia inteira sob a epiderme. Chico Buarque cheira a todas as mulheres do mundo. Narciso emana ego inflado, aquele odor que embrulha o estômago. Kahlo era doída. Devia ter um perfume de fechar os olhos e franzir a testa, de pesar os pulmões.
Não são todos que exalam o cheiro que pensam ter. Borrifadas de fragrâncias apenas complementam o engrandecimento ou as ruínas das pessoas.
Eu tenho medo de pedras. Em uma região de Machu Picchu, é possível encontrar pedras que pesam toneladas encaixadas perfeitamente, umas sobre as outras. Tamanha perfeição que nada encaixa em seus encaixes. E então eu tenho que ir pro Peru, sentir o calor daquelas pedras no final do dia, me deitar sobre elas e esquecer. Esquecer que a partir delas foram feitas prisões medievais. Lascadas, eram armas na Era paleolítica. De açúcar, já valorizou o dote de princesas.
Mas então o meu problema não são as pedras, mas o que se pode fazer com elas. Pedra que fica 98% submersa, enganando navios. Iceberg que afundou o Titanic. Pedras que atrapalham as frequências cerebrais, que calcificam dentro dos corpos. Mar de mármore, onde nada flui e há a impossibilidade da navegação. Pedras que delas se fazem lápides. Mito da Caverna, uma espécie prisão particular. Pedra sobre pedra. Apedrejamento até a morte. Pedra no sapato, de uma proporção incalculável quando no seu encalço. Pedra Aristotélica, na qual devemos quebrá-la em dezenas de partes para colocarmos onde quisermos. Meu problema é com pedregulho, aquele peso absurdo impedindo a passagem, que desmorona casas, causa catástrofes, entope canais, não deixa a água passar. Pedras acabam com a fluidez das coisas. Pedrada, pedraria, pedra-pomes, pedrento, pedreiro, pedregulho, pedregoso, pedreira, pedra-sabão.
De pedra eu só gosto de gelo, das reluzentes e das minúsculas que formam a areia. Nada de blocos. Prefiro essas pequenininhas que invadem tudo. Invasões são interessantes.
Amor eu tenho pela vertigem provocada pelas alturas do penhasco - mas se da pedra o meu pé escorregar...
De reluzente, só os olhos.


15/11/2010

Algo de estranho permeia o meu peito quando vejo algum objeto igual ao meu em mãos desconhecidas, capas de livros absolutamente íntimos em estantes alheias, perfumes que remetem a singulares situações fora de contexto, em outros corpos ou outros campos.
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Parece que o outro passou por algum corredor estreito ao meu lado, inspirando o mesmo oxigênio que eu e não percebi. Daí a sensação estranha de compartilhar um gosto e um pensamento similar, se não o mesmo. A estranheza sacode meus ombros e grita nos meus ouvidos que nós não estamos sozinhos.
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Ontem fui na casa da vizinha de cima, uma francesa que mora no Brasil há décadas. Ela mora no apartamento há pelo menos o dobro da minha idade. O dela, com centenas de metros quadrados, mais parece um deserto para uma só pessoa. Num vazio incômodo, o cheiro fortíssimo de caffe ocupa todo o espaço que lhe é possível. O meu, exatamente com o mesmo planejamento arquitetônico e de mesma simetria e disposições, é habitado por 3 pessoas, mas fazemos tanto barulho que alguns perguntam porque as minhas outras irmãs não saem de casa. "Não existem outras, somos só nós", respondo. Descendentes de italianos são assim. A consequência disso é o encurtamento de espaço. O ambiente é caótico. Nas festas de família, frequentemente os vizinhos convidam policiais para baterem as nossas portas - moradores de Copacabana são assim. Parece briga, mas a porta é aberta e, estamos nos abraçando.
Avec le temps...avec le temps va, tout s'en va... escuto aqui em baixo, a música que sai lá de cima.
Sometimes I hang my head, in shame. When people see me, they scandalize my name. I'm going down...
ela escuta lá em cima, a música que ecoa aqui de baixo.
Nos últimos anos não esqueci da Marion, mas o (na verdade, a falta de) tempo tem me impedido de reviver aquelas tardes imensas. Não só o tempo, mas a altura - que me impede de brincar de baixo da sua mesa da sala, as barbies esquecidas e o bom senso. Talvez a vergonha também. Como será a visão de lá de baixo, agora, com esses olhos maiores ainda?
Ontem fui visitá-la depois de alguns anos, com quebras de regime em encontros no elevador, no hall, e em todos os outros lugares que sempre se resumirão a tímidos tudo bens, seguidos de interrogações sem a certeza da resposta.
Quando fui ver Marion as paredes continuavam amareladamente iguais. Até hoje não sei se é esse mesmo o tom da cor, ou se o cheiro do caffe se materializa e faz dar a impressão de o branco ser encardido. Talvez o sofá fosse outro, já não lembro. Percebo a televisão ocupar o lugar de um quadro. Talvez Marion tenha dado prioridade ao barulho mudo da televisão, ao silêncio ensurdecedor de Renoir. Não sei se é a velhice. Talvez sim. Mas isso não importa. Marion ainda carrega o sotaque rasgado do francês, deve estar alguns centímetros mais baixa, com o mesmo sorriso de canto de boca, escondendo uma certa rigidez que não tem nada de carranca.
O caffe já começa a ser feito. Ali é lei. Lá em baixo, não temos televisão, e o café só é feito dia de semana, para manter a cafeína ativando o cérebro.
Aqui em cima, as fotografias fazem a presença de suas filhas que moram a milhas, enquanto lá em baixo temos o péssimo hábito de não revelá-las. Álbuns de fotografias só são feitos em datas comemorativas.
Encontro uma minha perdida, naquelas caixas com um cheiro que só o tempo pode dar, com as feições ingênuas que ele também há de tomar, recém chegada da praia, com a pele de uma cor que apenas o luxo de largar tudo agora poderia me dar, chupando a ponta do cabelo, com gosto de sal do mar.

Marion volta da cozinha, perguntando, alegre, a caffe? oui, oui?
Desconfio dos resquícios de francês em sua língua ser pura vaidade. Mas não é ruim, não tê-lo a descaracterizaria. Rio e respondo, si vous plâit madame, trés fort, tentando resgatar algumas frases que me ensinou, por demais esquecidas. Em meio as brincadeiras e as conversas, lembrei que quando pequena eu passeava pelos cômodos tateando as paredes, de olhos vendados, tentando descobrir o que estava em cada pedacinho da minha casa, no andar de baixo. Já sabia o percurso a ser seguido. Desviava do que era necessário, ia mais rápido em algumas partes, sempre tentando achar alguma semelhança em um espaço também vazio, ou mobiliado. O dela, no entanto, era sombriamente vazio, o meu, aconchegantemente cheio. Então, eu fazia livremente o contorno de todos os móveis da minha casa sem que estivessem ali, mas como se desenhados no chão. Não havia a possibilidade da colisão. Nossa maior diferença, de mesma metragem, separada por um teto.
Hoje percebi que ainda se mobiliassem exatamente do mesmo jeito, ainda faltaria algo e, nem mesmo se erguessem dezenas de paredes naquela casa, preencheria o vazio. Nada teria a ver com festas, televisões ligadas ou Ferré sussurrando no último volume. Faltava um tipo de presença ali.
Dessa vez não pude realizar minha função, exercida praticamente todos os dias, durante anos da minha infância com primos, amiguinhas e francesinhos malditos, les petit-enfants, o maravilhamento da identificação.
Não escuto mais Ferré nem Piath berrando lindamente pelas janelas de cima, e faz falta. Falta que me iguala a Marion. Tout s'énvanouit...
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Aqui, no andar de baixo, meu suspiro enche meus pulmões, sempre parecendo não darem conta.
Lá, no andar cima, Marion expele um certo vazio pela boca.
Aqui, o café passou a ser necessário pela função.
Lá, aprecia seu caffe, sentada em seu sofá, quiçá novo, observando as cenas passarem diante de seus olhos.
Lá, na sua espera, tem pressa.
No seu Atacama particular, tenta manter seu coração molhado pois, seus olhos permanecem ressequidos.
Aqui na minha pressa, somente espero.
No meu Oceano Atlântico tempestivo faço ventanias catastróficas, renasço em outras praias. Deliro a qualquer hora, deságuo por todos os cantos.
Na minha inundação particular, viro divisor de águas.

09/11/2010

Eu amo cavalos. Cavalos são seres abençoados, sendo puramente músculos e graça. Mesclando fúria com delicadeza. Suavidade com rapidez. Veludo com crina. Cavalos são abençoados pois, na colonização da américa espanhola assustaram os incas como sendo representações divinas.
Os andaluzes são referenciais no ballet, onde lambe-se o chão com a ponta das patinhas, nos igualando a éguas. pocotópocotópocotó. Cavalos são abençoados porque deixam serem montados, e montaria requer honra. Por isso não dão o lombo para qualquer um. Para montar, o cavaleiro tem que ter doçura, pedir licença, sem achar que vai surpreender chegando por trás. Com apenas um coice, mata-se. A rédea pode ser puxada com força, mas só se ele permitir. O galope requer entrega. Se ele não te derrubar, puxa de novo. Nada tem a ver com domínio, mas com entrelaço. A cada corrida fica melhor.
Cavalos são imaculados pois seus olhos refletem tudo o que está sendo visto. Não são como cordeiros que imploram o tempo todo salvação. Cavalos não precisam serem salvos, eles são a própria salvação. Os marinhos morrem de inveja e eu,