20/04/2011

Carta aberta, amassada e jogada no chão por um faminto que revirava o lixo.


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Júlia,


Aprendi essa semana numa aula de roda - bem como aquela que tínhamos quando crianças, rodeados de lápis e desenhos espalhados pelo chão, muita coisa que já sabia, que pra mim não existia nome. Agora, nessa faculdade, as imaginações não vão mais pro papel. Apenas constroem narrativas que ouvimos sair naturalmente do arquivo extraordinário da Literata.


Escrevi no meu caderno 'Notas sobre o Belo', registros sobre culturas, cosmologia, alma e esplendor. E foi nessa aula que percebi que o Belo se escreve com letra maiúscula; que a beleza articula o belo com o bom, provindo do grego kalo e agathos; fui apresentado ao Fedro, no qual o Belo resplandece por toda parte. Mas quem resplandece é você Júlia, e por isso resolvi traduzir do grego para o português, com as minhas próprias mãos, a sua origem antes mesmo de você.


Porque vê-la, tão mais bonita, a cada distração sua? Estou dentro de uma bolha, ou o quê? Não sei porque é tão violento estar com você. Parece machadada no peito, ceifada nos sentidos. Ás vezes chega a doer.


Ontem te vi, de longe, sorrindo da mesma maneira que sorri ao fazer carinho com suas mãos de cavalo. Porque você é assim, delicadamente bruta. Poderia ter construído o oráculo de Delfos por observar o limite. Aperta forte demais quando abraça, quase rasga quando beija. Tem tanta vida que não cabe tudo aí dentro, então se dissipa pelos braços, cabelos e tato. É inteira demais pra alguma metade.


Escrevi certa vez sobre perfumes, cheiros e suas potências e, o seu é terra. Selvagem, serena, Terra paralela, quase ficção. Natureza do mito grego, indígena, Inca. És tu.


Te assisto passar como se assiste a cada onda do mar rebentar, com os pés sobre a areia, esperando-os afundar. Mar de ressaca, mas ressaca são seus olhos e, como vociferou Bentinho, 'para não ser arrastado, me agarro aos cabelos espalhados pelos ombros, mas tão depressa buscava as pupilas, pois a onda que saía delas vinha crescendo, a me tragar...'. A cor dos seus olhos descobri. Cor de abismo, eu já vi.


Você é mar mas, mar são as mulheres e, mulher é só você. Você é gentileza mas, Gentileza é um profeta que saiu escrevendo pelos muros da Cidade e, profecia só pode ser você. Você é fúria, mas fúria é música e, toda derivação de melodia é, inexplicavelmente, você.


Personificação do justo, garganta do chaos, princípio de tudo. No diálogo que cuidadosamente traduzi, bem dizia: 'É forçoso que o amante apaixonado inveje o amado, impedindo-lhe muitas convivências úteis, causando assim um grande prejuízo'. Então vá, solte minha mão. Pode ir que não quero lhe impedir nem prejudicar.


Promete que entende tudo que vou lhe dizer agora?


Já pesquisei sobre Maat, Filebo, eudemônico, e só encontrei você. Li sobre a virtude e o vício de Platão, a riqueza de Ptahhotep, Longo Sofista e só li você. Mergulhei na honestidade áspera de Anaïs Nin, analisei O Laocoonte, transcendi com as obras de Kush e Grie, descolei do senso comum e, do todo, entendi que você é poema e poema pode ser tatuado, mas pra que tatuar o que já se tem decorado?


'Benditos teu pai e tua mãe; benditos os que te amaram e os que te maltrataram; bendito o artista que adorou e te possuiu, e o pintor que te pintou nua, e o bêbedo de rua que te assustou, e o mendigo que disse uma palavra obscena; bendita a amiga que te salvou e bendita a amiga que te traiu; e o amigo de teu pai que te fitava com concupiscência quando ainda eras menina; e a corrente do mar que te ia arrastando; e o cão que uivava a noite inteira e não te deixou dormir; e o pássaro que amanheceu cantando em tua janela; e a insensata atriz inglesa que de repente te beijou na boca; e o desconhecido que passou em um trem e te acenou adeus; e teu medo e teu remorso a primeira vez que traíste alguém; e a volúpia com que o fizeste; e a firme determinação, e o cinismo tranqüilo, e o tédio; e a mulher anônima que te vociferou insultos pelo telefone; e a conquista de ti por ti mesma, para ti mesma; e os intrigantes do bairro que tentaram te envolver em suas teias escuras; e a porta que se abriu de repente sobre o mar; e a velhinha de preto que ao te ver passar disse: “moça linda…”; bendita a chuva que tombou de súbito em teu caminho, e bendito o raio que fez saltar teu cavalo, e o mormaço que te fez inquieta e aborrecida, e a lua que te surpreendeu nos braços de um homem escuro entre as grandes árvores azuis. Bendito seja todo o teu passado, porque ele te fez como tu és e te trouxe até mim. Bendita sejas tu.'




João"


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18/04/2011

- Não entendi.

- O que?

- A última frase do Jabor na crônica de hoje. "Nós não sabemos ainda, mas nosso grande prazer será sentido quando não estivermos presentes".

Camila lê em voz alta para André, dando a primeira mordida no seu pão de café da manha. Camila leu o texto inteiro sem encostar na mesa, hipnotizada com o verso do Segundo Caderno, como faz todas as segundas e terças. São os seus preferidos.

- O que você não entendeu? Me desculpa, mas não me surpreende. O Jabor não fala mais nada com nada. Já houve o tempo...

- Não é verdade, não fala isso. Ele continua incrível. Só não sei se ele tá falando da morte física, da espiritual, do prazer impalpável ou do inalcançável.

- O que dá no mesmo. Tudo isso não seria mesmo o fim?

- ...

- Não sei porque você perde tempo lendo essas besteiras.

Camila olha pela janela, tentando alcançar alguma luz para esclarecer aquela escuridão.

12/04/2011

A professora de antropologia faz referência a simbologias que estamos, definitivamente, presos. Códigos nos conectam involuntariamente, e nos permitem afastar as mãos maior sinal de repugnância do Ocidente, ou aproximá-las - maior sinal de gentileza do Ocidente. É a inevitável análise do massacre, pois massacrados também estamos sendo, ou do acolhimento, não sendo necessariamente algo gentil, mas para fins de interesses.

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Bestializo os signos dessa cidade, passo os olhos e assisto, mas não vejo. Uma menina estende o braço direito e o dedo indicador, para fazer uma espécie de sinal, na expectativa de que o transporte pare para ela adentrá-lo. E ela consegue; um grupo de pessoas ainda bebe álcool em um bar, ás 6 da manhã de uma terça-feira; uma mão leve recosta sobre meu ombro. Levo um susto. Gentilezas têm recebido esse tipo de reação...

Não tenho vontade de compreender essa corrente interminável de símbolos, pois eu só preciso ir.

Estou há mais de uma hora tentando chegar no lugar, na promessa do saber e simplesmente não quero pensar em nada. Avisto o templo, ostentando um imponente sinal em seu topo. Finalmente chego e quase não acredito. Me restam 15 minutos de recomposição para entrar lá. Pressa antes das 7 não funciona.

Ao pisar na sala, os sinais de transmissão se curvam em minha direção. São cabeças, sem necessariamente alguma coisa dentro delas, mas que possuem um conjunto de mecanismos de receitas, regras e instruções. São obedientes, e geralmente as balançam quando concordam com alguma transmissão. Sorrio e expurgo o meu desejo de um bom dia. Todos compreendem. Meus condutores de informação enviam e recebem.

Que bom. Isso é normal e um sinal de que tudo está bem. Até eu avistar uma das piores coisas em vida: sinais bloqueados. A menina com seus sinais e cabos de transmissão decapitados. Ela não é muda nem surda. Apenas não há troca. Gesticula, abre a boca e tenta emitir qualquer coisa e, nada sai. Não escreve não relata não sente. A personificação da mesa ambulante. Uma mesa que fica em pé e anda. Prática e óbvia. Terrivelmente óbvia.

Uma mesa me incomoda. Me incomoda mas, compreensivelmente, não possui nenhuma cadeira à sua volta. Sua praticidade não serve de apoio, nem para copos ou punhos. Coitada da mesa. Lá vai ela, à procura de qualquer coisa. Certamente encontrará seu grupo, pois eles estão sempre em bando.