08/11/2012

"Hoje é quinta-feira. Ou sexta? Na verdade não importa, e adoro isso. Sou livre. Poderia estar voando pra Paris nesse momento. Ou para o Japão. Porque mesmo não vou ao Japão? Os pés atrofiados das japonesas me dão agonia. Membros amarrados ainda quando crianças a ponto de comprometerem sua forma de andar para sempre. Cruzes, deve ser por isso. "São imperdoáveis membros miúdos em demasia", certa vez disse Fernanda Young. "Exagerando, membro nenhum miúdo. Os homens devem ser grandes para se aproximarem melhor de Deus. Os homens devem voar." Pensando nisso, eu poderia estar correndo na praia. Debaixo de uma chuva de granizo. Poderia não me importar com a minha saúde. Talvez eu não seja tão livre para isso. Hoje deve fazer sol. Gostaria de ler o dia inteiro debaixo da sombra de uma árvore. Estamos no inverno, seria maravilhoso. Ler me ajuda a me distanciar dos meus pensamentos mais incongruentes. Me ajuda a não pensar em quantas pessoas cabem em um órgão. O coração não deveria ser só mais um órgão? Gostaria de saber o tamanho da parte dele designado somente para o amor. Até onde seria o bastante por ele? O que é o bastante? E se eu já tiver feito tudo, como vou saber? O que eu sei que conseguiria deixar pra trás? Quem você sabe que seria capaz de amar? Ler me previne de tudo isso. De olhar para a parede e pensar nos microorganismos que entram ainda vivos no nosso corpo quando inspiramos, e saem já mortos, quando expiramos. Por quê? Por que respirar? É tão óbvio mas, assim, o que poderíamos colocar no lugar? Afinal, poderíamos ter braços no lugar das pernas e pernas no lugar dos braços. Instintivamente faríamos tudo ao contrário, não é mesmo? Não existe o preto e o branco? O dia e a noite? Quintana e Bukowski? Kelly Key e Tchaikovsky? Então, duvido responderem essa. Quem souber, eu caso. Poderia tatuar no meu braço como promessa. Como eu gostaria de saber! É necessário mesmo uma resposta? Porque penso nisso? Em toda essa esquisitice enquanto respiro. Alguém ao menos sente isso? Olho pro céu. Tenho a certeza de que ninguém sabe, consequentemente não vou precisar me casar com um desconhecido que saiba uma banalidade dessas. Ainda bem.


Hoje não vai fazer sol. O céu tem sua metade azul e a outra metade cinza, e duas nuvens absolutamente idênticas pairam uma sob a outra. Um espelho gigante, da espessura de um fio de cabelo - no qual só consigo enxergar através dos olhos do meu subconsciente, reflete duas montanhas brancas de algodão lá em cima. Eu poderia ser Dalí nesse momento. E sou. Posso ser o que eu quiser, na verdade. Só preciso do rocambole com pedaços de morango e chantilly aqui do lado, porque a verdade mesmo, é que ler piora tudo.

'Fecharemos para obras, mas reabriremos em breve. Aguarde notícias aqui.'

Não sei se acredito. Que placa horrível. Um aviso do que já vai, esperando que se prepare um buraco no peito para o vazio se formar. 'Aconcheguem seus corações, estou partindo, saindo de suas vidas. Podem se conformar? Com licença...por favor, com licença, me larguem!' - era o que deveria estar escrito ali. Porque eles não fecham as portas da padaria e desaparecem de uma vez? Sem aviso, cairiam mais facilmente no esquecimento. Que horror. Aquilo me soa como um consolo. Um consolo àqueles que acordam as 5 da manhã com desejo de comer o rocambole com pedaços de morango e chantilly. Sinto piedade de mim. Definitivamente não acredito no que está escrito. Quantos dias eu ainda tenho? Tempo suficiente pra montar um estoque de rocambole, espero."

Com a boca doce e o coração molhado, lembrou da casa de shows que também decidiu pendurar uma placa muito parecida, numa época em que de tanto frequentar, sentia que ali era onde realmente morava.

"A casa das noites em branco e das inesquecíveis. Das brigas infantis e das reconciliações desesperadas. Das conquistas que nunca aconteceram, das que duraram até meio-dia do dia seguinte. Das companhias da noite, de domingo, e das que sequer existiram. Aniversários, comemorações e desejos. Desejos de sim, desejos do não. 'Casa' porque afinal, em casa você sabe o que encontrar. A vida na adolescência, na maioria das vezes, é muito previsível. O lugar onde aprendi a namorar, a bater cabeça e a dançar livremente. Sem as técnicas dos fouettès e grand pliès. Mas um dia a casa 'fechou para obras', e nunca mais abriu. Depois ouvimos boatos que corríamos risco de incêndio. Eu até que poderia me pendurar no lustre e escalar até janela, mas não foi preciso. Desde então nunca mais acreditei nisso, só fingi que sim pra evitar um desespero muito maior - o de nunca mais ter. Nunca mais ter é demais pra mim. Será que eles pensam que o anúncio da dor é menos tensa? Uma espécie de dor mais lenta, talvez? Que loucura. Como quando a pessoa entra no barco e se despede, adentrando cada vez mais no infinito do mar. 'Que Iemanjá o tenha', penso pensando. Não entendo bem o nível de maldade que construí essa frase, mas vamos lá. As coisas acabam. De forma abrupta ou não. É preciso aceitar isso. A realidade mata um sonho, uma decisão acaba com um relacionamento, a possibilidade de um incêndio acaba com o lugar que abriga a memorabília da sua adolescência, ou com seu rocambole preferido. Porque o último capítulo de um livro precisa ser escrito. Até o luto precisa acabar para dar lugar a uma nova vida que será, em tempo, um novo luto. A vida precisa continuar. 'When we wrong we move along', não era assim aquela música, horrível por sinal? Mas não deixa de ser a verdade."

Com outra garfada, termina a fatia do rocambole. Completamente absorta pelo enredo pessoal, percebe que é assistida por dois rapazes, às 5:15 da manhã. Sente-se um rocambole com pedaços de morango e chantilly.

'Que deselegante, ainda nem acordei'. Com a minha calma de gato, olho para o pulso e lembro de respirar. Volto para casa.

Não consigo mais dormir. Porque como a padaria previu, eu senti. E quem sente, apalpa o peito para tentar lembrar o que antes tinha ali. Sinto muito, mas nem me lembro mais. Não costumo segurar o que já vai.

Vou para Paris. Preciso encostar o nariz em Van Goghs e Gauguins. Au revoir, adieu, fini!